quinta-feira, 27 de agosto de 2009
Longos Dias Têm Cem Anos
A sala onde a Sophia recebia as visitas tinha uma lareira, e era diante da lareira que nos reuníamos. Creio que era no Verão, e o Castelo de S. Jorge estava iluminado. Maria Helena e Arpad tinham uma casa nas Amoreiras, e, nesse tempo, as Amoreiras eram assim como Salon, na Provença, com respeitáveis árvores de ar ligeiramente canibal; as raízes rebentavam os passeios como se fossem proceder a um abraço esmagador da pacata cidade. Mais tarde, Maria Helena disse-me que pensara ir viver para Salon, que é a corruptela de Shalon e que, assim, sugere paz e a mais cordial simpatia provençal. Mas, a mim, Salon parecia só um lugar com grandes plátanos, como disse, capazes de devorar uma praceta com a sua épicerie e as velhotas azedas que morrem de tédio entre o pâté de canard e a renda vitalícia.
Íamos nisso do meu primeiro encontro com o Arpad e a Maria Helena. Arpad disse que estavam ali as três mulheres de mais talento em Portugal, e, por sorte, ninguém mais o ouviu senão nós três. Ele sabia que não ia acender rivalidades porque tínhamos diferentes artes. Modalidades, como se diz no Porto. O Carlos Carneiro, que era um snob com muita fantasia para agourar o mau gosto burguês, dizia que um dia o chamou um pedante tímido, que os há nas faustas ruas da cidade, e lhe confessou: «Eu também me dedico à modalidade». E deu em mostrar-lhe horrendas aguarelas, marinhas e não sei que mais. Pois nós não nos acotovelávamos na modalidade. Maria Helena pintava, eu escrevia romances, a Sophia fazia poesia— e assim continuamos dentro do território demarcado, sorrindo, aplaudindo e permitindo ao génio a cumplicidade em que a emulação não mete o dente. A Sophia era um caso — uma mulher que tem a cortesia de parecer vulnerável. Eu era um caso — incerteza apaixonada. Vieira era um caso — uma mulher justa, o que é extraordinário e incalculável. Por exemplo: eu não sou justa, ajuízo as coisas. Eu e a justiça somos pura coincidência; o facto de isto se repetir faz talvez o prodígio, mas não a certeza.
Agustina Bessa-Luís,
"Longos Dias Têm Cem Anos - Presença de Vieira da Silva", 1982
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