O TRATAMENTO DAS VESPAS
O inverno passou e deixou atrás de si as dores reumáticas. Um leve sol matinal vinha alegrar os dias, e Marcovaldo passava umas horas a ver desabrochar as folhas, sentado num banco do jardim, à espera da hora de voltar ao trabalho. Ao pé dele vinha sentar-se um velhote, todo amarrecado dentro do sobretudo remendado: era um tal senhor Rizieri, reformado e sozinho no mundo, também assíduo frequentador dos bancos soalheiros. De vez em quando este senhor Rizieri estremecia e gritava - Ai! - e encurvava-se ainda mais debaixo do sobretudo. Estava cheio de reumatismo, de artrite, de lumbago, que apanhava no inverno frio e húmido e que continuavam a acompanhá-lo todo o ano. Para o consolar, Marcovaldo explicava-lhe as várias fases do seu reumatismo, bem como do da mulher e da filha mais velha Isolina, coitada, que não crescia lá muito sã.
Marcovaldo trazia todos os dias o almoço num embrulho de papel de jornal; sentado no banco, abria-o e dava as folhas amarrotadas ao senhor Rizieri que estendia a mão impaciente, dizendo: - Vejamos que notícias há hoje - e as lia sempre com igual interesse, mesmo se fosse de há dois anos.
Assim um dia descobriu um artigo sobre o sistema de curar o reumatismo com o veneno de abelha.
- Deve ser com o mel - disse Marcovaldo, sempre propenso ao optimismo.
- Não - contrapôs Rizieri. - É com veneno, diz aqui, com o do ferrão - e leu-lhe algumas passagens. Discutiram muito tempo sobre abelhas e as suas virtudes, e sobre quanto podia custar aquele tratamento.
A partir dessa altura, ao caminhar pelas avenidas, Marcovaldo ia de ouvido à escuta de qualquer zumbido, e seguia com os olhos todos os insectos que voavam em seu redor. Assim, ao observar as voltas que dava uma vespa de grande abdómen às riscas pretas e amarelas, viu que se metia no buraco de uma árvore de que saíam outras vespas: um zumbir, um vaivém que anunciavam a presença de todo um vespeiro dentro do tronco. Marcovaldo pôs-se logo à caça. Trazia um frasco de vidro, em cujo fundo ainda havia dois dedos de marmelada. Pousou-o aberto junto da árvore. Logo uma vespa zumbiu à volta dele e entrou, atraída pelo cheiro açucarado; Marcovaldo rapidíssimo tapou o frasco com um papel.
E pôde dizer ao senhor Rizieri, assim que o viu: - Vá, vá, dou-lhe já uma injecção! - mostrando-lhe o frasco que continha prisioneira a vespa furiosa.
O velhote estava hesitante mas, custasse o que custasse, Marcovaldo não queria adiar a experiência, e insistia em fazê-la ali mesmo no banco: nem era preciso o paciente despir-se. Com temor mas ao mesmo tempo com uma certa esperança, o senhor Rizieri levantou uma ponta do sobretudo, do casaco e da camisa, e abrindo uma passagem por entre as malhas rotas da camisola descobriu uma ponta dos lombos onde lhe doía. Marcovaldo aplicou no sítio a boca do frasco e tirou o papel que fazia de tampa. Ao princípio não aconteceu nada; a vespa não se mexia: teria adormecido? Para a acordar Marcovaldo deu uma pancada no fundo do frasco.
Era precisamente a pancada que convinha: o insecto lançou-se em frente como uma seta e espetou o ferrão no lombo de senhor Rizieri. O velhote deu um berro, pôs-se de pé num salto e começou a marchar como um soldado em passo de parada, esfregando a zona picada e soltando uma série de confusas imprecações.
Marcovaldo ficou todo satisfeito, o velho nunca tinha andado assim tão direito e marcial. Mas um polícia que passava por ali parou e ficou a observar a cena de olhos arregalados; Marcovaldo pegou no braço de Rizieri e afastou-se a assobiar.
Tornou a casa com outra vespa no frasco. Convencer a mulher a levar a picada não foi tarefa muito fácil, mas por fim lá conseguiu. Por algum tempo, pelo menos, Domitilla só se queixou do ardor da vespa.
Marcovaldo dedicou-se a apanhar vespas a toda a brida. Deu uma injecção a Isolina, e uma segunda a Domitilla, porque só um tratamento sistemático podia dar bons resultados. Depois decidiu-se a deixar-se injectar a si próprio. Os miúdos, já se sabe como são, diziam: - A mim também! A mim também! - mas Marcovaldo preferiu muni-los de frascos e mandá-los à captura de mais vespas, para suprir ao consumo diário.
O senhor Rizieri veio procurá-lo a casa; trazia consigo outro velhote, o comendador Ulrico, que arrastava uma perna e queria começar logo o tratamento.
A notícia espalhou-se; agora trabalhava em série: tinha sempre meia dúzia de vespas de reserva, cada uma no seu
frasco de vidro, postas em fila numa prateleira. Aplicava o frasco ao flanco dos pacientes como se fosse uma seringa, tirava a tampa de papel, e depois de a vespa ter picado, esfregava com algodão embebido em álcool, com a mão desembaraçada de médico experiente. A sua casa consistia numa única assoalhada, em que dormia toda a família; dividiram-na com um improvisado biombo, de um lado a sala de espera, do outro o consultório. Na sala de espera a mulher de Marcovaldo atendia os clientes e recebia os honorários. Os garotos pegavam nos frascos vazios e corriam ao vespeiro tratar do refornecimento. De vez em Iquando picava-os uma vespa, mas já quase não choravam porque sabiam que fazia bem à saúde.
Naquele ano o reumatismo serpenteava por entre a população como os tentáculos de um polvo; o tratamento de Marcovaldo ganhou grande fama; e no sábado à tarde ele viu a sua pobre mansarda invadida por uma pequena multidão de homens e mulheres que sofriam, queixando-se das costas ou dos flancos, alguns com o aspecto andrajoso de mendigos, outros com ar de pessoas remediadas, atraídas pela novidade daquele remédio.
- Depressa! - disse Marcovaldo aos seus três rapazes. - Peguem em frascos e vão apanhar todas as vespas que puderem.
Os rapazes foram.
Estava um dia de sol, e zumbiam muitas vespas na avenida. Os rapazes costumavam dar-lhes caça a uma certa distância da árvore onde estava o vespeiro, apontando sobretudo aos insectos isolados. Mas nesse dia Michelino, para se despachar e apanhar mais, pôs-se a caçá-los mesmo ao pé da entrada do vespeiro.
- É assim que se faz - disse aos irmãos, tentando apanhar uma vespa, pondo-lhe por cima o frasco assim que ela pousava. Mas aquela fugia sempre e voltava a pousar cada vez mais próximo do vespeiro. Agora estava mesmo à beira da cavidade do tronco, e Michelino ia pôr-lhe o frasco em cima quando deu por outras duas vespas enormes que avançavam para ele como se quisessem picar-lhe a cabeça. Pôs-se em guarda, mas ao sentir as ferroadas, gritando de dor, deixou cair o frasco. E logo a apreensão pelo que tinha feito lhe fez passar as dores: o frasco caíra dentro da boca do vespeiro. Já não se ouvia nenhum zumbido, já não saía mais nenhuma vespa; Michelino já sem forças sequer para gritar, recuou um passo quando do vespeiro saiu uma nuvem negra e espessa, com um zunido ensurdecedor: eram as vespas todas que avançavam em enxame enfurecido!
Os irmãos ouviram Michelino soltar um guincho e lançar-se numa corrida como nunca fizera na vida. Parecia que ia a vapor, de tal modo a nuvem que levava atrás de si se parecia com o fumo de uma chaminé.
Para onde foge uma criança perseguida? Para casa! E assim fez Michelino.
Os transeuntes nem tiveram tempo de compreender o que era aquela aparição metade nuvem metade ser humano voando que nem uma seta pelas ruas com um estrondo misturado com zumbidos.
Marcovaldo estava a dizer aos seus pacientes: - Tenham paciência, as vespas estão mesmo a chegar - quando a porta se abriu e o enxame invadiu a sala. Nem sequer viram Michelino que foi enfiara cabeça num alguidar de água: toda a sala ficou num instante cheia de vespas e os pacientes abraçavam-se na inútil tentativa de as afastar, e os reumáticos faziam prodígios de agilidade e as articulações ancilosadas soltavam-se em movimentos furiosos.
Vieram os bombeiros e depois a Cruz Vermelha. Deitado na sua cama do hospital, inchado e irreconhecível por causa das picadas, Marcovaldo nem se atrevia a reagir às pragas que das outras camas da enfermaria lhe rogavam os seus clientes.
Italo Calvino, Marcovaldo, Editorial Teorema, Lisboa, 1994
quarta-feira, 30 de dezembro de 2009
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
domingo, 27 de dezembro de 2009
Vale a Pena Ler
Jorge é uma espécie de actor que vive de expedientes (anúncios, dobragens, figuração), à espera da sua oportunidade; o grupo de teatro a que pertence não se entende sobre o próximo projecto. Quando a mulher, uma professora de Português profundamente deprimida, entra em furor pedagógico, abre espaço e põe em marcha uma série de acontecimentos que terão para Jorge a importância de uma única, ténue revelação.
Esta é a história de uma separação, mas também de uma paixão obsessiva, de uma viagem patética, de um projecto que corre bem demais, e de outras peripécias.
Ilusão (ou o que quiserem) é um romance satírico sobre um homem à procura da realidade, no meio de tantos, tantos fantasmas, vozes sem corpo, corpos sem voz, e da multidão de desconhecidos que faz parte da nossa vida de todos os dias.
(Texto da Contra-capa)
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
«Ler, que pode ser um vício, uma pedantaria ou um hábito, está reduzido a ser uma questão de tempo. Não há tempo para ler, a distância entre a casa e o emprego é cada vez maior, os consultórios só fornecem velhas revistas ou propaganda médica, as gares do metro são mal iluminadas, a leitura não é protegida numa sociedade comprimida entre horas de ponta e telenovelas. A sociedade não se organizou no sentido de fazer do leitor um património cultural. Aquele que lê modera as leis da imbecilidade que é o mesmo que dizer as leis do mal.»
[in Dicionário Imperfeito, de Agustina Bessa-Luís, Guimarães Editores, 2008;
[in Dicionário Imperfeito, de Agustina Bessa-Luís, Guimarães Editores, 2008;
sábado, 31 de outubro de 2009
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
Voz de Outono
Ouve tu, meu cansado coração,
O que te diz a voz da Natureza:
- «Mais te valera, nu e sem defesa,
Ter nascido em aspérrima soidão,
Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel deveza,
Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Como embalar, no berço da Ilusão!
Mais valera à tua alma visionária
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e turba vária,
(Sem ser uma só flor, das mil, que amaste)
Com ódio e raiva e dor… que ter sonhado
Os sonhos ideias que tu sonhaste!»
Antero de Quental, in Sonetos
quinta-feira, 27 de agosto de 2009
Longos Dias Têm Cem Anos
A sala onde a Sophia recebia as visitas tinha uma lareira, e era diante da lareira que nos reuníamos. Creio que era no Verão, e o Castelo de S. Jorge estava iluminado. Maria Helena e Arpad tinham uma casa nas Amoreiras, e, nesse tempo, as Amoreiras eram assim como Salon, na Provença, com respeitáveis árvores de ar ligeiramente canibal; as raízes rebentavam os passeios como se fossem proceder a um abraço esmagador da pacata cidade. Mais tarde, Maria Helena disse-me que pensara ir viver para Salon, que é a corruptela de Shalon e que, assim, sugere paz e a mais cordial simpatia provençal. Mas, a mim, Salon parecia só um lugar com grandes plátanos, como disse, capazes de devorar uma praceta com a sua épicerie e as velhotas azedas que morrem de tédio entre o pâté de canard e a renda vitalícia.
Íamos nisso do meu primeiro encontro com o Arpad e a Maria Helena. Arpad disse que estavam ali as três mulheres de mais talento em Portugal, e, por sorte, ninguém mais o ouviu senão nós três. Ele sabia que não ia acender rivalidades porque tínhamos diferentes artes. Modalidades, como se diz no Porto. O Carlos Carneiro, que era um snob com muita fantasia para agourar o mau gosto burguês, dizia que um dia o chamou um pedante tímido, que os há nas faustas ruas da cidade, e lhe confessou: «Eu também me dedico à modalidade». E deu em mostrar-lhe horrendas aguarelas, marinhas e não sei que mais. Pois nós não nos acotovelávamos na modalidade. Maria Helena pintava, eu escrevia romances, a Sophia fazia poesia— e assim continuamos dentro do território demarcado, sorrindo, aplaudindo e permitindo ao génio a cumplicidade em que a emulação não mete o dente. A Sophia era um caso — uma mulher que tem a cortesia de parecer vulnerável. Eu era um caso — incerteza apaixonada. Vieira era um caso — uma mulher justa, o que é extraordinário e incalculável. Por exemplo: eu não sou justa, ajuízo as coisas. Eu e a justiça somos pura coincidência; o facto de isto se repetir faz talvez o prodígio, mas não a certeza.
Agustina Bessa-Luís,
"Longos Dias Têm Cem Anos - Presença de Vieira da Silva", 1982
domingo, 26 de julho de 2009
quarta-feira, 22 de julho de 2009
terça-feira, 21 de julho de 2009
sábado, 18 de julho de 2009
Filhos dum deus selvagem e secreto
E cobertos de lama, caminhamos
Por cidades,
Por nuvens
E desertos.
Ao vento semeamos
O que os homens não querem.
Ao vento arremessamos
As verdades que doem
E as palavras que ferem.
Da noite que nos gera, e nós amamos,
Só os astros trazemos.
A treva ficou onde
Todos guardamos a certeza oculta
Do que nós não dizemos,
Mas que somos.
Ary dos Santos
ESTIGMA
E cobertos de lama, caminhamos
Por cidades,
Por nuvens
E desertos.
Ao vento semeamos
O que os homens não querem.
Ao vento arremessamos
As verdades que doem
E as palavras que ferem.
Da noite que nos gera, e nós amamos,
Só os astros trazemos.
A treva ficou onde
Todos guardamos a certeza oculta
Do que nós não dizemos,
Mas que somos.
Ary dos Santos
ESTIGMA
quinta-feira, 16 de julho de 2009
domingo, 12 de julho de 2009
sexta-feira, 10 de julho de 2009
Magnólia
A Flor do Sonho, alvíssima, divina,
Miraculosamente abriu em mim,
Como se uma magnólia de cetim
Fosse florir num muro todo em ruína.
Pende em meu seio a haste branda e fina
E não posso entender como é que, enfim,
Essa tão rara flor abriu assim!...
Milagre... fantasia... ou, talvez, sina...
Ó Flor que em mim nasceste sem abrolhos,
Que tem que sejam tristes os meus olhos
Se eles são tristes pelo amor de ti?!...
Desde que em mim nasceste em noite calma,
Voou ao longe a asa da minh’alma
E nunca, nunca mais eu me entendi...
Florbela Espanca
segunda-feira, 22 de junho de 2009
Crónica Decorativa
Imagem Hermenegildo Sábat
A circunstância humana de eu ter amigos fez com que ontem me acontecesse vir a conhecer o Dr. Boro, professor da Universidade de Tóquio. Surpreendeu-me a realidade quase evidente da sua presença. Nunca supus que um professor da Universidade de Tóquio fosse uma criatura, ou sequer cousa, real .
O Dr. Boro — sinto que me custa doutorá-lo — pareceu-me escandalosamente humano e parecido com gente. Vibrou um golpe, que me esforço por desviar de decisivo, nas minhas ideias sobre o que é o Japão. Trajava à europeia, e, como qualquer mero professor existente da Universidade de Lisboa, tinha o casaco por escovar. Ainda assim, por delicadeza, dei-me por ciente, durante duas horas, da sua presença próxima.
Preciso explicar que as minhas ideias do Japão, da sua flora e da fauna, dos seus habitantes humanos e das várias modalidades de vida que lhes são próprias, derivam de um estudo demorado de vários bules e chávenas. Eu por isso sempre julguei que um japonês ou uma japonesa tivesse apenas duas dimensões- e essa delicadeza para com o espaço deu-me uma afeição doentia por aquele país económico de realidade. O professor Boro é sólido, tem sombra — várias vezes fiz com que o meu olhar o verificasse — e além de falar e falar inglês, coloca ideias e soluções compreensíveis dentro das suas palavras. A circunstância de que as suas ideias não comportam nem novidade nem relevo apenas o aproxima dos professores europeus, pavorosamente europeus, que conheço.
Além disto o professor Boro tem movimento, desloca-se, não sei como, de um lado para o outro, o que, feito perante quem sempre teve o Japão por uma nação de quadro, parada e apenas real sobre transparência de louça, é requintadamente ordinário e desiludidor.
Falávamos de política internacional, da guerra europeia, e fizemos várias incursões pelos vários fenómenos literários característicos da nossa época. A ignorância que o professor Boro tinha de futurismo foi a única benzina para a nódoa da sua realidade moderna. Mas há algum professor de alguma Universidade da Europa que siga de perto os movimentos da arte contemporânea?
Dados os factos que venho explicando, compreende-se que eu fosse avaro de o interrogar sobre o Japão. Para quê? Ele era capaz de atirar para dentro da minha ignorância uma quantidade de cousas falsas. Quem sabe se ele se atreveria a insinuar pela conversa fora, como cousa normalmente acreditável, que no Japão há problemas económicos, dificuldades de vida para várias pessoas, cidades com lojas reais, campos com colheitas como as nossas, exércitos realmente parecidos com os da Europa e com execráveis aperfeiçoamentos científicos para guerras em verdade contemporâneas? Daqui ele não hesitaria talvez em me afirmar — com que cinismo nem eu meço — que no Japão os homens têm relações sexuais com as mulheres, que nascem crianças, que a gente de lá, em vez de estar sempre vestida como as figuras da louça japonesa, despe-se e veste-se como se fosse europeia. Por isso não tratámos do Japão. Perguntei ao professor se ele tinha tido uma boa viagem, e ele caiu em dizer-me que não — como se um estudioso como eu da porcelana nipónica pudesse admitir que há más viagens para os japoneses, que — delicioso povo! — nem sequer se dá ao trabalho de existir. As chávenas partem-se, não comportam tormentas. A frase «uma tempestade num copo de água» ou «numa chávena», como dizem outros, é puramente europeia.
Uma frase houve (casual, quero crer, no professor Boro) que me magoou mais do que outra.
Falávamos — eu, é claro, com o desprendimento com que se tratam estes assuntos feéricos — da influência dos mecanismos sobre a psicologia do operário, quando se sabe — claro está — que o operário não tem psicologia. E o professor referiu-se aos progressos industriais do Japão e acrescentou umas palavras, que me esforcei com metade de êxito para não ouvir, sobre (creio) movimentos operários no Japão e um fuzilamento (suponho) de não sei que chefe socialista. Eu há tempos — numa coluna sem dúvida humorística de um diário — vira em um telegrama de Tóquio constando qualquer cousa nesse tom; mas, além de não crer que de Tóquio se mandasse telegramas — visto Tóquio não ter mais do que duas dimensões —, ninguém que como eu tenha estudado a psicologia japonesa através das chávenas e dos pires admite progressos de qualquer espécie no Japão, indústrias japonesas, movimentos socialistas e chefes socialistas, ainda por cima fuzilados, como quaisquer europeus que vivem. Quem como eu conhece bem o Japão — o verdadeiro Japão, de porcelana e erros de desenho — compreende bem a incompatibilidade entre o progresso, indústria e socialismo, e a absoluta não existência daquele país. Socialistas japoneses! uma contradição flagrante, uma frase sem sentido, como «círculo quadrado»! Se nem o inexistente estivesse livre do socialismo! Aquelas figuras deliciosas, eternamente sentadas ao pé de casas do tamanho delas, à beira de lagos absurdos, de um azul impossível, aquém de montanhas totalmente irreais — essas maravilhosas figuras, com uma perfeita e patriótica individualidade japonesa, não pertencem decerto ao horroroso mundo onde se progride, e onde sobre o artista desabam a morbidez do produtivo e a barbárie do humanitário.
E vem querer tirar-me estas convicções o professor Boro, da Universidade de Tóquio! Não mas tira. Não é para ser enganado pela primeira realidade que se me atira aos olhos que eu tenho gasto minutos distensos na contemplação científica e estéril de bules e chávenas japonesas. O mais provável, a respeito deste Boro, é que nascesse em Lisboa e se chame José. Do Japão, ele? Nunca.
Se ao menos achei achei japonesa a sua cara? Absolutamente nada. Basta dizer que era real e existiu ali diante de mim, duas dolorosas horas, em plena ocupação inestética de todas as dimensões aproveitáveis (felizmente só três) do espaço autêntico. A sua cara parecia-se, é certo, com certas fotografias de «japoneses» que as ilustrações trouxeram há anos, e de vez em quando reincidindo trazem; mas toda a gente que sabe o que é o Japão por nunca lá ter ido, sabe de cor que aquilo não são japoneses. E, de mais a mais, essas ilustrações eram principalmente de generais, almirantes, e operações guerreiras. Ora é absolutamente impossível que no Japão haja generais, almirantes e guerra. Como, de resto, fotografar o Japão e os japoneses? A primeira cousa real que há no Japão é o facto de ele estar sempre longe de nós, estejamos nós onde estivermos. Não se pode lá ir, nem eles podem vir até nós. Concedo, se me forçarem a isso, que existam um Tóquio e um Iocoama. Mas isso não é no Japão, é apenas no Extremo Oriente.
O resto da minha vida, doravante, será escrupulosamente dedicado a esquecer o professor Boro e que ele — impronunciável absurdose sentou na cadeira que está agora, na realidade de madeira, defronte de mim. Considero doentio esse facto, alucinatório talvez, e entrego-me com assiduidade a não me lembrar dele mais. Um japonês verdadeiro aqui, a falar comigo, a dizer-me cousas que nem mesmo eram falsas ou contraditórias! Não. Ele chama-se José e é de Lisboa. Falo simbolicamente, é claro. Porque ele pode chamar-se Macwhisky e ser de Inverness. O que ele não era decerto era japonês, real, e possível visitante de Lisboa. Isso nunca. Desse modo não havia ciência, se o primeiro ocasional nos viesse negar o que os nossos estudos assíduos nos fizeram ver.
Professor Boro, da Universidade de Tóquio? De Tóquio? Universidade de Tóquio? Nada disso existe. Isso é uma ilusão. Os inferiores e cábulas de nós construíram, para se não desorientarem, um Japão à imagem e semelhança da Europa, desta triste Europa tão excessivamente real. Sonhadores! Alucinados!
Basta-me olhar para aquela bandeja, pegar cariciosamente com o olhar naquele serviço de chá. Depois venham falar-me em Japão existente, em Japão comercial, em Japão guerreiro! Não é para nada que, através de esforços consecutivos, a nossa época ganhou o duro nome de científica. Japoneses com vida real, com três dimensões, com uma pátria com paisagens de cores autênticas! Lérias para entretimento do povo, mas que a quem estudou não enganam...
1914
Ficção e Teatro. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986
- 65.
1ª publ. in O Raio , nº 12. Lisboa: 12-9-1914
Rui Fernandes de Santiago [QUANDO'EU VEJO LAS ONDAS]
Quando’eu vejo las ondas
e las muit’altas ribas,
logo mi vêem ondas
al cor pola velida.
Maldito seja’l maré
que me fiz tanto mal!
Nunca vejo las ondas
nem as altas debrocas,
que mi nom venham ondas
al cor pola fremosa.
Maldito sej’l maré
que me fiz tanto male!
Se eu vejo las ondas
e vejo las costeiras,
logo mi vêem ondas
al cor pola bem feita.
Maldito seja’l maré
que mi faz tanto male!
segunda-feira, 25 de maio de 2009
Cnossos
Criação: Ricardo Puccetti e Luís Otávio Burnier
Actor: Ricardo Puccetti
Direcção: Luís Otávio Burnier
Produção: LUME Teatro
O actor Ricardo Pucceti, utilizando a técnica da Dança Pessoal, ontem - Mostra de Teatro de Santo André-, arrepiou-me e fez-me recordar a importância das sensações no teatro.
A prisão mental, o labirinto da memória, a angústia, a dor, o sofrimento, a solidão expressam-se, através dos olhos e da boca, numa tempestade. Todo o corpo do actor é palavra e nele escorre, literalmente, a solidão.
sábado, 11 de abril de 2009
Foto retirada do site da ilustradora Jane Courace
Existem cinco espécies de crianças no nosso planeta, hoje em dia: a criança cliente entre nós, a criança produtora sob outros céus, algures a criança soldado, a criança prostituta, e nos painéis curvos do metro, a criança moribunda cuja imagem, periodicamente, debruça sobre a nossa lassidão o olhar da fome e do abandono.
São crianças as cinco.
Instrumentalizadas, as cinco.
Daniel Pennac, Mágoas da Escola
sexta-feira, 10 de abril de 2009
quarta-feira, 18 de março de 2009
domingo, 15 de março de 2009
sexta-feira, 13 de março de 2009
Esquece ou Canta
Minha vida violada voltou. Com um saco às costas
Busquei as pinhas verdes de rapaz,
Tirei do mar a onda nítrica a iões difusos
Que endereça os peixes, arfa ao vento e capta
Com ouvidos de sal os sons do Verão que morre.
Afaguei as ovelhas na trama lassa aos meses,
Vapor de água durando, já chuva no pinho lacrimoso.
A poetisa viúva trouxe-me seus pobres versos
E a tarde compensou sua meia humildade.
A morte estacou na esperança. Fugi vivo.
Só depois percebi que a maneira era outra:
Ao céu velado o sol não chegava a romper,
Um fio de ouro à minha viola falsa
Vibrou o novo som compadecido
E fui então o que venceu a sua alma.
Rememora na noite a pomba e a virgem,
Esquece as cores que a terra tinha e o amor criou,
Restitui os desejos a quem saiba,
A paz aos que te sofrem — e arde vivo
Na lembrança de Deus. Esquece ou canta.
Vitorino Nemésio
terça-feira, 10 de março de 2009
Ao Longe os Barcos de Flores
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
— Perdida voz que de entre as mais se exila,
— Festões de som dissimulando a hora.
Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?
Só, incessante, um som de flauta chora...
Camilo Pessanha
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
— Perdida voz que de entre as mais se exila,
— Festões de som dissimulando a hora.
Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?
Só, incessante, um som de flauta chora...
Camilo Pessanha
sexta-feira, 6 de março de 2009
quinta-feira, 5 de março de 2009
Canção À Ausente
Foto: Graça Loureiro
Para te amar ensaiei os meus lábios…
Deixei de pronunciar palavras duras.
Para te amar ensaiei os meus lábios!
Para tocar-te ensaiei os meus dedos…
Banhei-os na água límpida das fontes.
Para tocar-te ensaiei os meus dedos!
Para te ouvir ensaiei os meus ouvidos!
Pus-me a escutar as vozes do silêncio…
Para te ouvir ensaiei os meus ouvidos!
E a vida foi passando, foi passando…
E, à força de esperar a tua vinda,
De cada braço fiz mudo cipreste.
A vida foi passando, foi passando…
E nunca mais vieste!
Pedro Homem de Mello
quarta-feira, 4 de março de 2009
terça-feira, 3 de março de 2009
A Escrita
a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada
esta paixão pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos
espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar
outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo
Al Berto
segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009
sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009
segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009
MUNDOS
quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009
I-mobilidade
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