terça-feira, 10 de agosto de 2010
Ligo a ternura eléctrica do calorífero que queima mais do que aquece e me frita a perna. A ementa não varia, como sempre a mesma coisa: tanto me faz. Pressa de voltar aqui a fim de continuar a escrever. Leio a última frase e avanço aos solavancos, este é um ofício esquisitíssimo. Quando lerem nem sonham o que penei nas frases. Quer dizer, espero que nem sonhem o que penei nas frases. Tem de parecer fluido, fácil. Que dia é hoje? Sei lá, tanto faz. Tanto faz? Tanto faz. Um relâmpago e logo a seguir sons de penedos enormes a caírem uns por cima dos outros. Se tivesse quinze anos outra vez jantava com os meus pais, os meus irmãos. Tenho saudades disso, de fazer parte de uma família. Esperar, aflitinho, diante do quarto de banho fechado. Se batiam à porta avisava-se
- Está gente
num berro que os azulejos ampliavam. Pode parecer ridículo mas adorava voltar a fazer cocó em Benfica. A banheira com patas de leão, o esquentador pré-histórico, os perfumes da minha mãe numa mesa, o cheiro da laca dela, a brilhantina do meu pai, o pente sempre gorduroso, a escova com que alisava o cabelo apertando-o nas têmporas. Era o único de nós que fazia a barba. Acho que também não visitou as Bermudas nem Marrocos nem Porto Rico. Saía para o hospital de manhã, voltava ao fim do dia e tudo cheirava a cachimbo. Achava esquisito que tratasse o meu avô por pai, pai era ele, o meu avô era avô. Esse fazia a barba também. O mundo inteiro fazia a barba menos eu.Sinto a falta da rapariga lá em baixo, à chuva, preocupo-me com o que lhe terá acontecido. Nem quero pensar que a água das valetas a levou, de mistura com as folhas caídas.
António Lobo Antunes
Excerto retirado da Revista Visão nº909
Foto feita na Quinta dos Olhos Bolidos - 05/08/10
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